vendi hoje uma casa...
... e depois tirei a tarde para descer ao rio.
A descer a avenida - já encharcado - tive de entrar à socapa num dos prédios para poder fumar um cigarro abrigado.
Fumar dentro de, portanto.
Eu conhecia os quatro cantos ao prédio que é um velho amigo.
Foi lá o meu primeiro estúdio.
Isto hoje é rídiculo, o fumar dentro de.
Até para mim passou a ser.
Sentei-me automaticamente no segundo de três degraus e de costas para o lance ascendente das escadas e para o elevador, que era aliás a posição comum de espera quando, há 16 anos, tentava arranjar coragem para galgar os sete pisos de uma assentada.
Nos dois anos que lá estive vi o elevador funcionar oito vezes.
Ali no átrio senti o vazio de quem se despede de uma casa.
A fumar dentro de.
Numa cortina de fumo e dentro de.
Venho do tempo onde nas prateleiras dos quiosques se alinhavam os provisórios com os definitivos.
Na altura era comum viver em ambientes dos quais a nicotina e o alcatrão eram parte integrante...
... os animais entravam com os donos nas lojas e julgo que o poeta da revolução ainda não desempenhava as funções de coordenação de programas de texto na RDP (*) e o cartão de crédito ainda não tinha sido inventado.
(*) Nota: Num país tão ingrato e desconfiado, sería o cúmulo descobrirem não ser da autoría do poeta da revolução a sua poesia.
Lembro-me de aos cinco anos me sentar ao colo - ou ao lado, por ter sempre querido passar por adulto - do meu pai que me ensinava então os rudimentos da paciência, da ordem e do detalhe.
Começavamos sempre pela bancada e pela implantação de um tapete escalado de borracha formato A1 sobre e ao lado do qual se dispunham organizadamente os instrumentos, os líquidos e as partes plásticas:
líquidos à esquerda, para o fumador destro não lhes dirigir por reflexo a mão do cigarro e assim poder desencadear uma desgraça familiar;
instrumentos de corte á direita, com um cinzeiro ao lado e, por conseguinte, à minha frente;
plásticos acima do tapete, alinhados ao centro e à distância de um braço adulto.
Também havia fio metálico, palitos e até cheguei a ver um corta-unhas.
E eu estava ali sentado, agarrado à caixa e ainda me competia a função de porta-cigarros.
Para além da caixa nada se via, estando a altura dos meus olhos alinhada com o plano de trabalho.
Por esta altura, poderão pensar estar a divagar sobre o envolvimento infantil na produção de explosivos artesanais, mas não...
Saíam de uma cortina de fumo - e sobre a caixa - blindados, mono, bi e triplanos e, no natal ou na páscoa, um Tirpitz, um Ark Royal ou mesmo a Memphis Belle...
Olhava para eles e para a caixa, alternadamente, como se precisasse de confirmar a autenticidade do acto e da relação entre forma e figura.
Mas o número sempre correu bem, finalizando-se sempre o acto com um: "e agora limpas a mesa..."
Eu despejava o cinzeiro e depois arrumava os inflamáveis - nos quais não se incluíam tintas pois toda e qualquer aptidão é exclusivamente devida a genética materna - ferramentas e pequenos detritos, agarrando por fim a parte que sempre mais me intrigou:
a pequena - ou grande - estrutura plástica de injecção, ou "os arames" na gíria infantil, que também significam lixo na gíria adulta.
O arame respondia a uma estranha lógica tubular feita de ligações, de separações e de derivações separados por partes rectangulares achatadas com siglas que, em conjunto, se prendiam a vazios que sugeriam a forma da peça que lá faltava.
Eu guardava-as pois o meu gozo eram essas peças e não o Tirpitz, o Ark Royal ou a Memphis Belle... eram mesmo "os arames".
Como parte sobrante, eram para mim a matriz arqueológica de um sistema intrigante de vazios a partir dos quais imaginava outros Tirpitz, outros Ark Royal, outras Memphis Belle...
Já o contrário não era possível, imaginar "os arames" a partir do Tirpitz, ou do Ark Royal, ou da Memphis Belle.
Por outras palavras, via-me empurrado para a primeira das reflexões filosóficas antes de saber ler ou escrever:
a parte, o todo, a relação da parte com o todo e vice-versa, a completude e o esvaziamento e toda a série de pensamentos que se nos assomam em climas chuvosos.
Para mim, sentado no meio da cortina de fumo, lembrei-me dos arames e de como se assemelham à nossa própria estrutura da vida, aos seus preenchimentos e aos seus esvaziamentos.
Hoje vendi uma casa e por isso vendi parte dos meus arames, pensei.
Depois fui até ao cais das colunas apanhar chuva.